terça-feira, 11 de maio de 2010

Voto do preso.

“O importante não é o que fazem do homem, mas o que ele faz do que fizeram dele.”
(Sartre)

A prisão, seja definitiva ou provisória, atinge o direito de liberdade, mas não pode estender seus efeitos a outros direitos garantidos pela Constituição Federal. O mesmo deve ser dito no que tange às medidas impostas a menores infratores. O que reza a lei é para ser cumprido. Nada a discutir.

Em ano eleitoral, o assunto referente ao direito do voto a ser exercido pelo prisioneiro maior vem à baila e nos põe a imaginar. Pensar, primeiramente, no sistema penitenciário brasileiro, que vive desafios muito grandes, até mesmo o de como manter o detento na condição de preso. As fugas frequentes já não causam espécie e, o que se torna pior, alimentam no presidiário a expectativa sempre renovada de ser ele, quem sabe, o próximo a escapar das malhas da lei. A esperança da liberdade pelo cumprimento total ou parcial da pena é substituída pelo bater asas antecipado e indevido.

Não há necessidade, por largamente conhecidas, de relacionar as grandes dificuldades enfrentadas pelas autoridades, de um lado, e pela sociedade, de outro. Esta espera daquelas o cumprimento mais célere, seguro e eficaz da lei. A sociedade reconhece os aspectos estruturais do sistema carcerário, ao lado das falhas da própria legislação, e os erros humanos, os quais agravam e justificam seus temores. Não obstante, exige e pressiona por mudanças.

No meio desse embate está o preso. Aos olhos do cidadão comum e pouco esclarecido, o detento brasileiro não só goza de garantias e regalias, negadas à maioria, como zomba das instituições. As pessoas desse grupo desconhecem, ou só reconhecem quando perdem, o significado da liberdade, do direito de ir e vir, dos quais o detento está privado. Às vezes, nem ele mesmo tem a dimensão de sua perda.

Entendo que, se esse cidadão privado de sua liberdade física, mas pertencente a uma sociedade democrática, deve votar, que vote. Assim manda a lei. Vale, no entanto, pensar a respeito da extensão de liberdade que ele goza para fazer uma escolha de tal relevância, até onde as condições de escolha já estão ou não predeterminadas. E voltamos, pois, à questão da liberdade.

O que diferencia o homem das coisas é que só ele é livre e se sabe livre. Liberdade é, pois, alguma coisa muito maior do que um conceito filosófico vazio, ou de uma ilusão romântica e libertária e, por conseguinte, revolucionária. Liberdade é algo, chame-a de que nome se queira, inerente à essência humana, como nos ensina MACPHERSON: “a essência humana é ser livre da dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício de posse”1.

A primeira coisa que um homem possui é o seu corpo; todo homem é proprietário de si mesmo e de suas capacidades. Prisioneiro, privado da posse plena de seu corpo submetido às normas por ele contrariadas, tem reduzido o seu poder de estar livre das vontades alheias. Tratando-se de sistema prisional, vê-se exposto ao rigor e a limites que lhe são impostos, nem sempre efetivamente cumpridos, mas necessários para satisfazer a sociedade. Nas cadeias e penitenciárias, os presos têm acesso a informações e espaço para discuti-las com seus iguais.

As relações entre os homens não são de contiguidade, mas de engendramento, isto é, não estão simplesmente uns ao lado dos outros, mas são feitos uns pelos outros. Os homens se humanizam ou se desumanizam. No caso, embora impedidos de ir e vir, pagando dessa forma os seus crimes, gozam de certa liberdade, específica para a situação real. Eles conhecem o complexo sistema eleitoral, e também aqueles que se apresentam como candidatos. Diante disso, afirmo que podem exercer com dignidade o direito do voto.

Há que se esperar, contudo, que sejam tomadas, na prática, sob pena de anular a eleição à vista de qualquer anormalidade, todas as medidas legais, no sentido de garantir urnas fiscalizadas, seu transporte seguro, o sigilo do voto, a ordem indispensável e, finalmente, a vitória limpa da democracia.

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¹ A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke, p. 260.

Fonte: Publicado por Damásio de Jesus - http://blog.damasio.com.br

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